É por causa dessa esperança que idealizamos sonhos, realizamos projetos, participamos do desenvolvimento social e, evoluímos. Sim, é a esperança que nos move durante a vida toda! Mas, afinal, o que é a morte? Um mistério, um tabu... talvez seja ela o maior medo de boa parte das pessoas, ainda que seja também, a única certeza que temos.
Assim, nossa maior preocupação deveria ser com a vida, em como viver coerentemente para chegar ao fim desta jornada sem arrependimentos sobre coisas que fizemos ou, que deixamos de fazer. Cultivar relações saudáveis, cuidar de nós mesmos com a mesma dedicação com que cuidamos dos parentes e amigos, ter hábitos saudáveis, sem deixar de fazer aquilo que temos vontade e nos torna felizes, são alguns dos apontamentos para uma vida mais leve e uma morte mais preparada.
Esse tema sempre vem à tona, especialmente neste mês de novembro, quando celebramos o Dia dos Mortos, e, para tentar desmistificar um pouco, conversamos com Sonia Sirtoli Färber, que é Doutora em Tanatologia e Teologia Bíblica, Pós Doutora em Ciências do Cuidado da Saúde e há 25 anos articulista da página de Tanatologia da revista da Arquidiocese de Cascavel.
Afinal, o que é a morte?
Sonia: Quanto falamos em morte, nos referimos não apenas à morte física, mas também às mortes simbólicas, que é o fim de um estado de vida, quando termina uma etapa da vida à qual não se pode mais voltar. Então qualquer fim é uma morte, mas no estado físico, a gente pode comparar com o nascimento. O nascimento é a nossa primeira morte, todos já morremos, porque ali acaba um estado de vida que nunca mais vamos viver. E a nossa morte física é isso, o fim de um estágio que nunca mais vai voltar, e, a passagem para um novo estágio.
É possível amenizar o medo da morte, o qual todos sentimos?
Sonia: Aqui tem duas realidades, o medo da morte em si e o medo do morrer. O medo da morte é o medo do que vai acontecer no exato instante em que deixamos essa vida, isso envolve querer saber se vai doer, se vou ficar sem ar, se vou ter angústia... este sofrimento físico é o medo da morte. Já o medo do morrer está vinculado aos afetos, à espiritualidade, é o querer saber para onde eu vou, o que vai acontecer, o que será da minha alma? E também o medo de deixar as pessoas, a tristeza pelo fim do companheirismo, dos relacionamentos, do afeto. Porém, todos os medos são fundamentados na nossa incapacidade de lidar com algo que não dominamos, o desconhecido, e não tem dinheiro, não tem proposta, não tem negociação... a morte vem e quando vem não tem escapatória, isso dá medo.
O que é que move o nosso eixo espiritual?
Sonia: Na verdade, isso que você chama de eixo espiritual é o nosso conjunto de crenças. Cada um tem seu conjunto de crenças, ainda que tenhamos em comum uma matriz, que é cristã, cada um tem sua cultura, sua educação, as crenças familiares. O que vai fazer com que possamos, através de desse conjunto de crenças, enfrentar bem a morte, é crer na ressurreição. Se cremos que a vida não para com a morte física, então suportamos o que virá, porque sabemos que não é um fim, é uma passagem, termina aquele estado para inaugurar outro. Vamos sair deste plano para ir para algo que não tem medida, onde a alegria, a felicidade, tudo é sem fim. Isso nos dá esperança e vem do nosso conjunto de crenças, o que mais nos dá suporte para enfrentar a morte.
Porque temos tanto apego? Como aceitar que tudo o que construímos vai ficar aqui? Não apenas as coisas físicas, mas também as relações, as pessoas...
Sonia: Vai acontecer e será assim, mas temos que trabalhar isso em nós. É a maneira como a gente vive que vai ditar a maneira como a gente morre, não o tipo da morte, mas o modo de enfrentá-la. Uma pessoa que é desapegada na vida, será desapegada no fim dela, enquanto uma pessoa que é apegada nas coisas, nas pessoas, nos bens, terá muito mais dificuldade de abrir mão. É algo que, especialmente no âmbito afetivo, está vinculado ao bem querer, ao amor, e a gente nunca vai deixar de amar, ou dizer que isso não vai mais nos fazer falta. A melhor educação é acompanhar as fases da nossa vida, o progresso e também o declínio. Infelizmente hoje vemos uma cultura que nega o envelhecimento, que o despreza. Já me perguntaram, por exemplo, se eu não penso em amenizar minhas rugas, e sempre respondo que tive que viver muito para conquistar esses sinais na minha face e não vou tirá-los porque são lembretes de quem eu sou aqui. Se formos acompanhando o nosso corpo, que vai deixando marcas de quem somos, com tranquilidade e honestidade conosco mesmo, a gente vai se preparando para desapegar.
O que as pessoas poderiam fazer para evoluir nesse sentido?
Sonia: A própria Bíblia vem nos ensinar isso. Há muitas passagens que falam que a vida humana é breve, que a gente tem que estar atento para viver bem cada dia, porque ela vai passar. Há parábolas que nos falam de desapego, então temos coisas e enquanto as temos, precisamos zelar, cuidar e também aproveitar, porque tudo o que é fruto do nosso trabalho, é também Dom de Deus, que nos deu oportunidade para conquistar. Então não temos que desprezar, mas também não nos apegar, porque nada a gente leva.
Por que as doenças nos causam tanto sofrimento?
Sonia: Ainda que saibamos racionalmente e conscientemente que, de alguma coisa nós vamos morrer, que alguma doença vai nos levar ao fim, a vida é tão ampla, é tão de Deus, que uma pessoa que tem amor à vida nunca vai considerar que já viveu o bastante. Às vezes ouço jovens dizendo: quando chegar aos 80 para mim já deu, mas uma pessoa que está com 80 ou 90 anos não vai dizer isso, porque sempre espera viver mais, mas quando se tem uma doença, ou uma pessoa que a gente ama está com uma doença severa, é realmente muito triste, porque sabemos da morte. E as limitações físicas nos causam ainda maior sofrimento, por que dores nós temos todos os dias, mas aqueles sofrimentos físicos dolorosos e que incapacitam a pessoa a ter uma rotina normal, pode fazer com que o pensamento da morte se torne muito mais frequente.
Como nos preparar para a nossa morte e de nossos familiares?
Sonia: A gente se prepara vivendo bem, sabendo que se for esse o nosso último dia não temos arrependimentos, vivemos bem, deixamos as pessoas saberem do amor que temos e que acolhemos o amor delas, mas não existe uma forma de se preparar para não sofrer. Se você ama muito, vai sofrer muito e a gente não se prepara para não sofrer, o que nós nos preparamos é para entender que a vida é mais do que isso que a gente está vivendo hoje.
Como cuidar das pessoas enfermas, que estão morrendo, para que tenham um fim mais leve, e o que lhes dizer nessa hora?
Sonia: Muito mais o agir do que o dizer. É ser presença amorosa, presença afetuosa e não crítica. Alguns sabem, outros não têm noção que estão na sua terminalidade, então, é essa presença silenciosa, é o amor eficaz, é dar aquilo que a pessoa precisa, os cuidados, e silenciosamente estar ali, para que a pessoa saiba que não está sozinha, porque não tem discurso, não tem ensinamento que alivie esse momento da terminalidade, é ser presença mesmo e fazer com que se sinta amada.
Também é difícil encontrar palavras às pessoas próximas. Qual o melhor consolo a quem acaba de perder um ente querido?
Sonia: Bem, a primeira coisa é a nossa disposição. Se você está disposto a estar com esta pessoa, diga: eu estou aqui, conta comigo. Essa é a melhor coisa. A pessoa saber que não está sozinha, porém, só diga isso se você realmente está disposta e com o tempo disponível. Também é importante falar do amor que viveram, isso vai consolar e ser o suporte para ela, isso ajuda muito, ou simplesmente dizer, eu não tenho palavras, mas eu estou contigo. Porque não há o que se diga que vai consolar.
Podemos nos preparar para ter uma boa morte?
Sonia: Eu acho que viver conscientemente, viver bem, fazer uma retrospectiva diária para ver o que deu certo, o que não deu e reajustar a caminhada, sabendo que vivemos em sociedade e tem coisas que você não vai conseguir mudar, tem relações que você não vai conseguir curar. Então, fazer o que está ao seu alcance. Para a pessoa que está com uma doença e percebe que vai morrer, é importante ela fechar as suas histórias. Embora isso já deveríamos fazer ao longo da vida, não deixar histórias abertas, enfrentar os nossos fins, para ter o caminho livre. Aquelas coisas que a gente adiou para resolver, virão na hora da morte, até mesmo os lutos que não quisemos enfrentar, as conversas que não tivemos... enfim, são essas coisas que assombram a pessoa que está para morrer. Essa é a grande lição da vida, de que precisamos fechar cada história agora, enquanto estamos bem, lúcidos e capazes de gerir a nossa vida. Isso também serve para os bens materiais. Se tem roupas que não servem, precisa passar adiante, ir liberando os espaços da vida. Isso prepara a pessoa para morrer bem.
Como fazer com que a vida aqui tenha mais sentido?
Sonia: O sentido aqui tem uma palavrinha que se chama missão. O sentido da vida está ligado à missão de cada um. Temos talentos que nos orientam para desenvolver determinadas coisas na humanidade, mesmo que isso não nos dê dinheiro, mas aquilo que a gente faz bem, que o mundo precisa e que gostamos de fazer, essa é a nossa missão e é o que vai nos dar sentido para viver.
A nossa alma tem um preço? Quais são os nossos valores mais sagrados?
Sonia: A nossa alma tem valor, não dá para precificá-la, a nossa alma é de Deus. Foi Deus que nos criou, deu a vida para que existíssemos e ela volta para Ele. Então não dá para negociar a nossa alma, mas dos valores que temos o mais importante é o amor. O amor salva a vida em qualquer circunstância. Deus é amor e na eternidade tudo é regido pela presença intensa do amor. É esse o preço da nossa alma.
Conseguimos ter algum tipo de comunicação com nossos entes que partiram? Eles conseguem estar presentes na nossa vida?
Sonia: Acho muito boa essa pergunta, porque é uma pergunta que as pessoas se fazem. A doutrina da Igreja diz que não, que não há mais contato. O que há é o amor que a pessoa tem aqui. O pai e a mãe morreram, mas o amor que eles tinham pelos filhos continua na eternidade, eles continuam lembrando dos filhos, claro que sim, só não tem mais contato. Eles não nos veem aqui e nós não temos como falar com eles lá, mas o amor é este vínculo que continua, e que na fé da Igreja vamos nos reencontrar e viver em plenitude esse amor.
Então a conexão não desaparece, a comunicação sim. Uma vez tendo morrido, é posto um selo e nunca mais tem essa comunicação de falar, ouvir, enxergar, isto não, mas a conexão do amor sim, porque, por exemplo, uma mãe que teve vários filhos e viveu bem aqui, está santamente com Deus, e estar com Deus significa a ausência de qualquer sofrimento, mas se ela visse os perrengues que a gente passa aqui, o paraíso não seria perfeito, ela ficaria aqui preocupada e não em paz, é por isso que não há essa comunicação.
Você acredita que a gente se encontra lá?
Sonia: Não será de posse, porque as nossas relações são de posse, é o meu filho, é a minha esposa, é o meu pai... lá todos estarão juntos, serão todos irmão e vão se amar profundamente, vão se reconhecer, lembrar das suas histórias, das coisas boas.
O que podemos esperar da vida pós-morte e como ter a certeza de que as nossas orações alcançam nossos entes falecidos?
Sonia: Temos fundamentações teológicas bíblicas que falam sobre isso, que uma pessoa quando morre pode ser beneficiada na eternidade pela oração de quem está aqui e pelo ofício da liturgia. A doutrina cristã católica se baseia nisso, eu rezo para aquele que morreu, mas ainda não está face a face com Deus, e isso é purgatório. E essa oração vem a ser como um ato de caridade, pois, uma vez tendo morrido, a alma que é imortal sai do corpo que é mortal. O corpo morre, desaparece, a alma vai para a sua destinação eterna, que vai ser consoante à escolha que se fez aqui. Se a pessoa escolheu estar com Deus, vai com Deus, se escolheu não estar, vai para longe d’Ele.
É o que a gente chama de céu ou inferno, e existem apenas estas duas condições eternas, mas existe uma condição temporária que é o purgatório, a qual é vinculada ao paraíso. Então uma alma que vai para o purgatório, não corre risco de ir para o inferno. Este não é um lugar de sofrimento, é um estado da alma em que ela se prepara para se encontrar com Deus, porque quando morremos, levamos tudo que temos, as nossas memórias, os medos, baixa autoestima, coisas que em si não são pecados, são limites, e não se pode ter limite no paraíso, então o purgatório é uma preparação para o paraíso.
É nesse momento que os mortos precisam de oração. Porque quem está no céu não precisa mais pois porque já está com Deus. E quem está no inferno, a oração também não adianta, porque uma vez no inferno não sai mais. Mas, como não sabemos quem está e quem não está, rezamos para todas almas que estão no purgatório. No capítulo 8 do Apocalipse está escrito que os que estão diante do trono de Deus, no paraíso, que intercedem por nós. Então a nossa oração alcança sim as almas do purgatório, e as almas que estão no paraíso enviam a oração para nós, e a oração é o amor que sobe e o amor que desce, e essa circularidade do amor é a comunhão dos santos.
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